Nestes dias de crise por que passamos nunca será demais apelarmos a experiências passadas e delas tirarmos as devidas lições de vida pois cicatrizados e vacinados  na altura, hoje e mais que nunca, saberemos tentar dar a volta, e se não por nossa causa, pelo menos fazermos passar o legado desses tempos difíceis aos que nos estão próximos.

Num contexto de agonia existencial em que muitos dos nossos jovens se debatem, céticos e revoltados por possuírem “canudos” a que não lhes podem dar sequência profissional, a maioria ainda continua a engrossar filas de desemprego ininterruptas. Políticos, sociólogos e peritos em assuntos de marketing e empregabilidade vão apontando caminhos derivativos mas caberá a esta nova massa cinzenta fazer opções difíceis para tentarem tornear o problema.

Todavia e numa era global que já nada os assusta, não lhes faltarão talvez mais oportunidades do que as dos seus pais e avós. Hoje, fala-se muito de empreendedorismo com o apelo à inovação dos nossos jovens, que mais do que nós têm capacidades e bagagem intelectual e técnica de que a maioria dos seus progenitores não teve, por circunstâncias difíceis de vida. Acresce o seu próprio espírito de aventura, na saída do seu país, procurando alternativas às suas formações académicas, sendo bem revelador da mudança de paradigmas a que estávamos habituados no nosso pequeno cantinho à “beira-mar plantado”.

Também os atuais meios de informação e as novas tecnologias  fizeram encurtar e reduzir as próprias distâncias físicas que estão à distância de um simples clic do PC, e outras ferramentas virtuais, e o próprio papão da língua como desapareceu num mundo que já não tem fronteiras.

Num desses muitos momentos existenciais em que eles e nós nos debatemos cada vez mais com estas situações de crise familiar, vem sempre ao de cima tentarmos passar o tal legado da nossa experiência mesclada de conselhos julgados mais adaptados ao “hic et nunc” por que estão a passar.

– Azar o meu, não fiquei colocada – Lacrimejou a filha – mais um ano nisto e já é o segundo!…

Pelos progenitores, passava, uma vez mais, um engolir seco de saliva pronunciador de desalento, quase como o treinador que sofre mais no banco que o jogador no próprio campo.

– Oh filha, tem calma, há sempre uma janela que se abre apesar dessa porta te parecer fechada …

– Não sei que possa fazer mais, tirei um curso para quê, mãe, isto é uma desilusão total e só me apetece não sei o quê …

– É, amor, é desolador e frustrante querer-se trabalhar e não haver onde. Não desesperes, aguarda mais uns tempos pelo próximo concurso, talvez não haja umas vagas sobrantes?

– Eu até já pensei mudar de vida. Quero tornar-me independente e mais pareço um fardo em casa … Vou mas é emigrar!…

– Tira daí essa ideia. Como assim, ainda tens pais para te sustentarem, caramba. És nova e tens toda a vida à tua frente. Dá tempo ao tempo – tentou reconfortá-la o pai.

– No vosso tempo também era assim tão difícil, pai?

– Não penses que não era e talvez em circunstâncias muito mais difíceis pelas que vós estais a passar.

– Então, como foi convosco?

– Olha que a minha vida dava um filme, se queres saber…

– Conta lá, então.

– Sabes que a vida é como uma manta feita de retalhos e cada um de determinada cor que nos acaba também por colorir a cada um. É feita de experiências, umas mais enriquecedoras que outras e mesmo as piores acabam por ensinar-nos muito acerca das pessoas.

– Pois, pai, estava mesmo confiante que desta vez sempre seria a minha oportunidade e ainda nada se concretizou. Vou tentar não desistir e esmifrar o computador a ver se alguém desiste …

– Sabes que também tive de emigrar para a Alemanha e por cá ficastes vós com a vossa mãe. Foram tempos bem difíceis em que milhares de portugueses tiveram de sair da sua terra para sustentar os seus pois por cá só meia dúzia é que tinha emprego e a vida estava bem difícil. Naquela altura, para além do perigo de atravessar a fronteira, havia ainda a língua desses países e nós pouca ou nenhuma instrução tínhamos por cá, quanto mais ainda termos de nos habituar àquelas estrangeirices.

– Lá nisso tens razão. Agora, pelo menos já temos alguma bagagem linguística que nos ajuda a uma melhor integração. E não têm faltado solicitações lá fora para os mais variados empregos. Topa só: Angola, Reino Unido, Brasil, Suíça, Arábia Saudita … haja quem queira trabalhar por lá. Olha que duas amigas minhas já o fizeram para os Emiratos árabes.

– Entretanto, mete a papelada para o Fundo de Desemprego, sempre recebes algum!?

– Pelo menos, sempre minimiza a situação. Mas o que mais me valorizava era mesmo ensinar e transmitir o que aprendi na universidade e não vejo modo de o fazer …

– Como te compreendemos bem, minha filha – atacou a mãe – pode ser que apareça alguma coisa e tens bagagem técnica para o fazer.

E nós? Enquanto o teu pai lá estava, eu também tive de remar sozinha, fazendo umas coisinhas na costura para fora e para alguns clientes e ainda ali está a máquina Singer que se acabou de comprar às prestações. A vida de então também não era nada fácil, no meio de alinhavos, linhas de coser, botões, provas dos clientes até ao final das peças. E nem todos eram bons pagadores e já estão no mundo da verdade uns tantos que ainda nos ficaram a dever … Quando também a costura era pouca ou nenhuma, fazia colchas de croché à mão, com meadas de fio de algodão e enchia colchões de moinha ou de palha, e sei lá que tarefas mais estava envolvida!…

– É, parece que estou a ser um tanto egoísta a olhar só para o meu umbigo.

No dia seguinte, ao PC, revisitando a lista graduada das colocações e em alto pensamento:

Ah!… Deus queira que estas duas que ficaram à minha frente na lista desistam pois ainda não confirmaram a colocação, só têm 24 horas para o fazer. Nem vou arredar pé daqui …

Umas horas mais tarde:

– Oh mãe, uma já desistiu!… Passei para segunda. Ai meu Sto. Antoninho, agora é que vou adormecer com o PC ao colo.

– Estás a ver, filha, ainda pode ser que tenhas hipótese. Sabes que os concorrentes escolhem sempre várias escolas e depois mesmo seriadas optam pela que melhor se ajusta às suas situações.

– Deus te ouça, mãe, Deus te ouça, e logo esta que ficava mesmo ao pé de casa … Deus te ouça, mãe!… Só falta mesmo esta gaja que bem lhe podia dar uma branca!…

– Não fales assim, filha. Vai com calma.

Entretanto, atacou o pai.

– Como vês, se pensas que a vida é toda cor-de-rosa cor, esquece. Enquanto eras crianças, tu e os teus irmãos nem vos apercebestes dos trabalhos que passamos para vos sustentar. Olha que eu fiz de tudo, desde trolha a embarcadiço. E quando não havia trabalho até outros ofícios experimentei, ia à solha e aos irões no rio; fiz quadros de vidro com estampas de santos, de Cristos, e virgens ou para separatas de futebol; salguei sardinhas em cântaros de barro, criamos coelhos e galinhas; coloquei, à sapateiro, solas e tacholas em tamancos e chancas, para suster ao jantar desse dia. E não vos esqueçais que ainda tínhamos de comprar os vossos livros, os ferrões, as ardósias, os aparos para escrever, as folhas de desenho “Cavalinho”, os livros da tabuada da escola primária …

– Pois !… Também as passastes das boas nesse tempo. E eu aqui a lamentar-me como se estivesse a passar fome. Agora me lembro que muitas vezes roubei à mãe algum algodão para dar ao Zé para as zoeiras dele, ali na ribeira, e que se enrodilhavam tantas vezes nos fios dos telefones!…

No dia seguinte e quase no término do prazo da aceitação.

– Mãe !… Oh, mãe !…

– Que foi, filha, aconteceu-te alguma coisa ou dói-te alguma coisa?

– Não, mãe. A fulana que estava à minha frente também desistiu à última da hora…

Entretanto, o progenitor, assustado pelos gritos da filha acorreu de imediato ao quarto da filha:

– Mariana, que te aconteceu, filha ? Mas tu estás a chorar …parece que é de alegria !?

– Pai, mãe, fiquei na minha própria escola e nem caibo em mim de alegria … Tínheis razão, “quem espera sempre alcança”.

– Vês, filha, vale sempre esperar até à última. Estamos muito contentes contigo.

– Ah!… Não me vou esquecer de cumprir a promessa ao santo a que me apeguei. Que felicidade, mãe. Agora é certo. Amanhã vou logo lá apresentar-me.

E a filha lá passou todo aquele santo dia a telefonar e a mandar mail’s para as amigas e amigos a dar-lhes conta que agora também já era … Sra. doutora !!!

 

MAX

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