“Hoje, às vinte e duas horas, veja o único hipopótamo amestrado do mundo, instalado no Largo da Feira. Venha ao circo apreciar mais de vinte e duas parelhas de animais diferentes e respectivos domadores. Leões da Zâmbia, tigres da Malásia, macacos do Mali, araras do Brasil, jibóias de África, póneis da Irlanda, búfalos da Califórnia, lamas do Tibete, avestruzes da Austrália e um sem número de outros animais nunca vistos e reunidos num único espaço de circo, para deleite de Vossa Excelência e seus familiares. Divirta-se com os palhaços, prenda a respiração com os trapezistas romenos, surpreenda-se com os contorcionistas mexicanos, acautele-se com os ilusionistas espanhóis, admire os malabaristas italianos e o número especial do triplo mortal, sem rede de protecção, pelo maior par de trapezistas romenos da actualidade e vencedores do prémio especial do Concurso Internacional do Principado do Mónaco. Entrada grátis às damas e crianças dos quatro aos doze anos. Venha apreciar o maior espectáculo do mundo e traga os seus filhos. Hoje, Quinta-feira e até Domingo, nesta encantadora cidade” – propagandeava o altifalante da carrinha ambulante do circo Cláudio, neste Verão de 2012.

– Oh pai, lembras-te de quando éramos crianças e a avó nos acompanhava ao circo? Vinha de lá extasiada com as peripécias a que assistíamos. Mas o que eu mais gostava era dos palhaços, com aqueles narizes em batata e uns sapatões maiores que as calças à boca-de-sino e que estavam seguras por uns suspensórios que me faziam rir só de vê-los entrar!… Ah! E o seu acompanhante que mais parecia uma fada, vestido de cinza brilhante, de botins brancos e com um chapéu em cone e de cara toda enfarinhada de branco, tipo empada… E quando eles alapavam um no outro que parecia mesmo de verdade e só mais tarde lhe percebi o truque. Tempos da minha meninice que não mais esquecerão.

– Pois, filha, tu ainda tiveste sorte pois nessa altura os câmbios sobravam para esses extras. Mas no meu tempo, uma ida ao circo só lá para o último dia quando a entrada era “grátis às damas” e nós lá íamos no meio das nossas mães.

Alex como que vestiu de novo os calções de ter sido criança.

Em cada Verão, a pacatez da vila era quase sempre sobressaltada com a entrada de uma caravana de carruagens especiais cujos inquilinos montavam toda a estrutura própria ao maior espectáculo do mundo. Gente ainda mais pobre que os moradores da vila, aliás percetível nos seus modos de vestir aquando da montagem, mas que em pleno espetáculo se transfiguravam nos maiores senhores do mundo pois nem os reconhecíamos nas suas fatiotas. Estranhávamos aquele modo de vida nómada e nunca se retendo, definitivamente, em lugar algum, com os próprios filhos a saltitarem de escola em escola e a mudarem permanentemente de amigos e de lugares. Crianças que aprendiam o mesmo ofício dos progenitores nesta grande casa ambulante e não era surpresa se, aos seis anitos, uma daquelas meninas fizesse já contorcionismos tais que nos surpreendiam, onde começavam as pernas e acabavam os braços, quando em atuação. Por vezes, eram famílias inteiras, desde os avós aos netos e que partilhavam uma e a mesma especialidade, dos palhaços aos trapezistas.

Naquela altura, o bulício da vila como parecia adiado e substituía-se a um outro, de todo não estranho, pois era cíclico do tempo de Verão, quando aquela caravana chegava. A petizada fazia até um interregno nos seus próprios jogos de brincadeira, variando do estaminé das rifas das “panelinhas” e instalada há muito na Ribeira, para apreciar os malabarismos daqueles artistas que a extasiavam. Tantas vezes, misturava-se com o próprio elenco dos artistas, ajudando a acarretar paus e ferros e a montar aquela tenda gigante que se erguia altaneira acima de qualquer casebre da Ribeira, e ela própria poder ser a primeira a assistir à estreia se o capataz a reconhecia de soslaio, aquando da montagem do circo.

Muitos de nós deambulávamos ao redor do circo para apreciar aquela bicharada toda e ficávamos até mal dispostos quando um ou dois burros e cabras já envelhecidas eram sacrificados, à marretada, para dar de comer aos leões que nessa mesma noite eram as estrelas da companhia. Ficávamos boquiabertos com a altura das girafas e partíamos o coco a rir com as brincadeiras dos macacos que nos surripiavam as bananas e os amendoins se os fazíamos esperar em demasia.

Por cá passaram circos como o Cardinalli, Maravilhas, Guarani, Afra, Império, Prinfreres, Flecha-Monteiro, Araújo, Neerdelands e outros. O circo Guarani foi dos que maior êxito conseguiu por ter estado em cena durante um mês inteiro, com lotação esgotada e arrecadando cerca de trinta e dois contos! Quando rumou a Viana do Castelo ainda houve esposendenses que foram na camioneta do Linhares para revê-lo, sobretudo nos seus palhaços Fausto e Fredy que para além da sua graciosidade tocavam a especialidade do serrote.

Retratando:

– Olá, estimado público desta formosa e lindíssima vila de Esposende – apregoava o Maitre, logo seguido do toque da fanfarra numa introdução à “Heróica”. Entretanto, na bilheteira ainda se fazia fila para o almejado bilhetinho de entrada, a vinte escudos a plateia pois a bancada central, junto à pista, era a trinta escudos e reservada a alguns convidados especiais que por vezes também partilhavam do próprio espectáculo, sobretudo quando o ilusionista fazia desaparecer meia dúzia de relógios e logo encontrados noutro sítio ou no pulso de terceiros sem que os respectivos donos se apercebessem sequer das suas perdas momentâneas.

O geral não oferecia grande segurança e era preciso por vezes ser mais trapezista que os próprios trapezistas do circo para não se cair abaixo se os holofotes estavam na nossa direcção. Muitos de nós tínhamos de ver o espetáculo sentados e ao colo dos nossos pais que nos davam umas dicas dos truques dos artistas. Vibrávamos a cada actuação. Aqui e ali, ouvíamos umas bocas:

– Ah! “faneca” …és mesmo boazona !… – Entusiasmava-se um espetador mais acalorado quando a bela e rechonchuda trapezista acabava de fazer o triplo mortal e se amparava no seu par masculino, no outro lado do trapézio.

– Oh pai, quem é a faneca ? – Questionou-se ao progenitor.

– Esquece, aquele tipo é burro e pensa que está no cais …

Sem lhe perceber o significado, Alex já se via no meio de outro número, com uma lindíssima amazona a amestrar seis cavalos todos emplumados e que giravam sem parar à volta do estrado. Aqui e ali, galopavam pelo meio de umas rodas de fogo evitando as chamas, no meio dos aplausos gerais.

– Palmas para Mademoiselle Hélène e os seus lindos cavalos amestrados – solicitava o Maitre por entre mais e mais palmas.

– Ah! Baiana! … atreveu-se, de novo, o mesmo entusiasta.

– Alex, interrogou o pai com um olhar, de quem seria o tal fulano que estava sempre a mandar “filetes” para o palco e não obteve resposta, senão um gesto de desagrado pelo comportamento do dito cujo.

O que as crianças gostavam mesmo era dos palhaços e ansiavam mesmo pelo final do circo quando estes entravam de supetão. Até tocavam saxofones e trompetes, em músicas conhecidas da altura, ao som ritmado das palmas de toda a assistência.

Já para o final do espectáculo, o tal engraçado e talvez já bem “entornado”, viu-se, de repente, alvo de todas as atenções e envolvido num dos sketches mais hilariantes da noite, após ingresso algo turbulento de que o seu bilhete de geral lhe daria direito a ficar nas primeiras filas, tendo-o o Maitre, por fim,  arrumado perto do estrado principal, para este não fazer mais cenas do que as do próprio espetáculo a decorrer. Talvez com conluio deste, os palhaços esperaram pela ocasião propícia e fizeram um número especial ao nosso convidado:

– E agora, vamos apresentar o burro mais esperto que jamais viram algum dia. Ele é capaz de ler os pensamentos mais íntimos e adivinhar, apontando o focinho aos meus caros espectadores, das virtudes, defeitos e expetativas de cada uma das pessoas desta digna plateia – enquanto uma partenaire entrava em cena com o asno de nome “Mister Ed” e que apareceu equipado com uns óculos especiais.

Continuava o palhaço, chicoteando no chão e dando ordem de começo deste número muito especial.

– “Mister Ed”, vais aproximar-te de uma menina bem bonita, que está prestes a casar e ansiando muitíssimo que esse dia se aproxime.

O animal, após ter efetuado três voltas à pista, parou, subitamente,  apontando o focinho para cima e para baixo, junto de uma “brasa” que estava a passar férias e que alvo de tamanha atenção, meio envergonhada, lá confessou que se iria casar na próxima semana, perante palmas da assistência.

“Mister Ed” lá foi cumprindo a sua missão, adivinhando tudo à sua volta.

Num último Encore, o palhaço Fausto rematou a sua intervenção com um à maneira:

– Caros amigos, como viram, não há nada que escape ao nosso “Mister Ed”. Para acabar em beleza, ele vai tentar adivinhar quem é o espetador deste circo mais “amigo de Baco”  e que tem estado  hoje muito entusiasmado com o nosso espetáculo !?

Perante a surpresa geral e com alguns dos espectadores a tentarem esconder-se sorrateiramente no parceiro do lado, para evitarem serem o alvo preferido, o nosso amigo lavrante, confundindo talvez Baco com vaca, foi dos mais entusiastas quando “Mister Ed” se aproximou dele e parando na sua direção o apontou, com este a agradecer entusiasmadíssimo os aplausos do público… perante a chacota geral!…

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