Quando eu fui pela primeira vez a Esposende, achei que sucedia alguma coisa de solene; como um rito. Era em Julho. Nas noites em que o calor abrasava, vinha um hálito de vasa. Como se o princípio do mundo rompesse o cristal das areias e borbulhasse uma vida espessa e cega, no lodo. A motora do peixe descia pela corrente, os homens iam calados. Via-se o casco na linha da água, como uma faca abrindo a pele da noite. Os cães ladravam. A alma a Sul estava acordada. Desde tempos muito antigos ela tinha aquele pacto com o mar, sobrevivia nos seus flancos, paciente, lentamente, ajustada à magra colheita de peixe e de sargaço.

A alma do Norte floresceu um dia, construiu nos pinhais um chalé branco, pôs-lhe um azulejo azul, botou patamar e alpendre á moda de mestre Raul Lino. Plantaram-se tamarizes na avenida; alguma dama no seu mirante aprendia piano com uma senhora do Porto, e tinha um chapéu com cerejas maduras. Distinguia-se; a sua gola de valencianas ficada de grão de areia quando ela saía á rua.

Os banhistas eram gente de Braga e de Barcelos de gostos moderados. Clericais, fechados. E as peixeiras, arrastando o corpulento saiote, vinham pousar no muro a canastra e deitavam em volta os olhos coruscantes, prontas ao debate. Era como a barra do tribunal esse mostrador de pedra onde caía o sangue do congro e a água viscosa da sardinha. Diziam-se clamores e juras, chamava-se o Pai do Céu para testemunha; para juiz  a Virgem, que era mais de confiança das mulheres. A fruteira, com o seu carrinho onde coravam os pêssegos tocados por uma dedada de auscultação, oferecia «bananas do Douro». E uma ameixa verdinha e açucarada dizia muito dos pomares selváticos, entre o quinteiro e a eira, com figueiras em que rebentava o preto figo debicado pelos pardais.

A alma do Norte era assim. Vinculada às cidades, às vilas espessas onde um cheiro de esgoto rompia dos quintais regados à tardinha. O banhista vinha com quatro filhos e a criada, mais duas crianças que eram como família, uma tia vestida de preto que se queixava do vento, da sereia do farol, e que bebia litros de chá, para esquecer. Quando caía a tarde, uma paz imensa subia do mar, estendia-se sobre os campos. Os mocinhos do leite, com as bilhas de alumínio, vinham seguidos por um cão de pelo açafroado. A luta tinha um halo; um certo segredo de meteorologia pairava entre estrela e estrela. Curavam-se as queimaduras do primeiro b anho de sol; e caía, na cana do nariz, uma pele seca como papel, com a sua memória de inverno no vinco dos óculos. Na farmácia avivava-se a manteiga de cacau, os linimentos. O dono tinha um dito de humor para a freguesia, um pouco de tristeza andava nesse riso. Gostava de bichos; nunca vi homem que estimasse os animais que não fosse melancólico. Vê neles lealdades que as pessoas não conseguem cumprir.

A alma do Sul despertava com as primeiras roçadoras de caruma, tingidas de nevoeiro. Vinham em passo trotado, entravam nas bouças, e a geada quebrava sob os seus pés. Eram furtivas mas tranquilas; tinham olhos habituados ao escuro dos pinhais e que brilhavam na fímbria do lenço em que a poeira fizera traços claros. Depois, as padeiras apareciam com rostos de noviças, apressadas, matinais de descrição, confabulando com o costume de cada morador, o lugar onde deixar o pão, o molete tostado, o bijou mais branco, o jornal, ainda um pouco humedecido de tinta. Ouvia-se o grito dos pavões da casa em frente. Era um grito gélido e angustiado, como se precedesse uma cena de Hitchcock. E os pinhais coroavam-se de sol, abria-se o dia.

O verão é de todos. É uma festa fácil. Passa o comboio brinquedo na avenida, com o seu toldo vitoriano; e quase se aplaude de pé nos passeios, olhando. Mas o inverno dessa vila cujo foral se celebra e lhe foi concedido há quatrocentos anos – diga-se com beatitude – é um tempo do mais profundo apego à natureza marítima das coisas e das pessoas. Um entendimento entre o mar e a gente, entre o silêncio e a gente. A praia é como nova, sem pegadas. Dorme o maçarico já sem ninho, os juncos dormem. E, até Viana, há aquele campo de areia onde brilham molhados os godos, onde uma sandália amarela, com uma flor de plástico, desponta. E o sargaço. Verde e negro, como brasão de fadigas centenárias, recortado, com desenho de cacto de oceano, ele anda na onda baixa, estende fitas no lombo do mar com xairéis e gualdrapas franjadas…

… A alma do Sul, no inverno tem uma doçura particular. O café e o fumo espalham um cheiro mais forte. A igreja parece mais visitada pelos fiéis, ou nela demoram mais tempo. A formosa madona está mais resplandecente no seu canto escuro; porque o frio embeleza a sua pele escurinha. É Beatriz de Dante, na casta sonolência do Paraíso.

E vem o vento das tempestades, o trovão de Maio, o sol de todo o ano. As dálias abrem nos jardins; a alface com elas. Nascem criancinhas nos seus presépios, as mães sorriem, os moços vão para África, os estucadores emigram, os velhos vão ficando mais calados. Cumprem-se quatro séculos sobre o foral da vila. Foi ontem. Ainda há quem se lembre. Veio um meirinho, um cura, um escriba espanhol, dois arautos, um mancebo que fazia versos e que comeu três muges lardeados que o levaram a cantar as ninfas do Cávado. Não sabemos quando a poesia passa pelo osso suborbital denticulado da boca do muge. Os autores de Grécia e de Roma falaram do muge. São peixes indefesos, a quem só a habilidade extraordinária faz escapar aos seus inimigos. Lineu fez grande confusão com os muges; mas os poetas não.

A alma do Norte é nómada; só no pleno verão ela apresenta um carácter. Nas varandas sentam-se os banhistas, o pôr-do-sol ensina-lhes salmos, enquanto o vinho esfria no gelo. Param os carros defronte do hotel, as toalhas de banho secam, pesadas de salitre. Os pequenos caminhos abrem-se com o seu antigo e absurdo peso de viagens que ali começaram. Aonde chegam? Ao monte do Faro? A Santiago? A Roma? Quantos lugares do alto de S. Lourenço se avistam! É gandra e é Belinho. As Marinhas, com os  moinhos  sintéticos à beira da estrada. São Bartolomeu, do mar curandeiro. Fão, terra de salineiros e matelotes, Barca do Lago, pouso de velhas viagens. Grande é a comarca e pequeno o mundo. Como novas pedras de um xadrez rural, as vacas alternam com a carrocinha vermelha ou verde que tem uma cruz pintada, como os carros romanos das batalhas. Perdura o símbolo onde a função esqueceu.

A alma do Sul é grave, com mulheres de preto, meninos que aprendem a cortar o nispo e a rilada, ou o talhar um colete. No chão do bairro dos pescadores compõem-se as redes: velhas de olhos adessos como lumes e saiotes em cuja dobra guardam os trocos, sentam-se no pó. São mulheres acordadas para o rito da vida e que sabem prever a hora dum parto só com olhar a prenhada de relance. Não há muita diferença entre a ambos pode lograr o doente. Deita-se de lado e morre, se lhe apetece, haja receita de antibiótico ou defumadoiro. As mulheres do sul eram especiais. Como tânagras, sequinhas do vento, consoladas do passado, celtas de corpo e alma. Viviam do peixe, da caruma, do sargaço; e algumas aburguesavam-se, faziam colchas. Punham nas cómodas uns vasinhos de barro pintado a cores, ou bailarinas de mármore, ou uma taça com duas pombas, mas eu preferia quando, sentadas nos litreiros, falavam dos vizinhos com aquele sotaque interrogador, cantando: «Nina, nossa menina?», diziam elas. Era-se pertença da comunidade, bafejada da bênção do lugar, mimo do tempo em que o coração batia uns pelos outros – e se ouvia.

A alma do Norte, onde eu morava, era otimista. Mas não valia a pena porque tinha o futuro garantido, fazia bons negócios, dispunha de relações, mandava nisto e naquilo. Mas não no vento e na chuva. Por isso se queixava do tempo, melindrada que ele lhe tomasse a mão. Agosto era ríspido, Setembro ameno; em Julho três dias de canícula, ou seis, ou nove. E quando dava em ventar e cair água as moscas entravam dentro de casa como peregrinos surpreendidos, zumbiam e ensarilhavam as asas. Pregavam-se ao pelo dos cães, causavam-lhes neuroses e histerias, como agora se diz…

… Tem feitio de proa a chegada a Esposende. O cemitério, onde os túmulos de granito espreitam como coroas de reis visigóticos sem olhos e sem perfil, fica diante do rio. Te, árvores japonesas, não sei que são. Representam um desgrenhado signo de viúvas do mar. É do sul que eu falo; mais discreto, mais resistente, dura há quatrocentos anos com privilégio. E, sem ele, muito mais. Era terra de armadores, faziam-se barcos, como ainda se fazem desde vila do Conde á Gafanha, com um olho pintado, como os barcos em que se sepultavam os fenícios. Ele varara, com as ondas, o destino. A alma do Sul, na morte e na vida, sabia para onde ia. O pinheiro manso da avenida do hospital

contemporizava e dava sombra. Sentavam-se debaixo os viajantes que iam para o Porto da carreira da uma e dez. Ia gente de Anha e de Forjães, negociantes de marisco, a recém-casada que tinha consulta na médica, o vereador, o homem do minério antigo e que perdeu o pio. Os padres já não iam. A cozinheira da pensão que ia ver a filha nas Órfãs; as freirinhas vendedoras de bordados, o namorado que veio fazer uma surpresa à noiva – e ela achou-o pálido e acanhado. O pinheiro manso do hospital dava abrigo a tudo isto. Era como asas, indiferentes mas seguras. A professora e o tasqueiro; o canteiro e o estudante do Instituto – a pasta, o guarda-chuva, a cesta condessa, o frango vivo, o garrafão e a trouxa, a bicicleta com o guiador virado, o colchão de arame para o hóspede, o ramo de enterro e de casamento, tudo vinha e ia, tudo ia e vinha. Norte e Sul – tudo se regozijava e pedia notícias, e mandava recados, e às vezes até andava perto de desesperar, mas não chegava a isso. Esposende, território de escuro coração, com sangue pisado dentro! Beleza formidável, verso na nudez do vento!

 

Augustina Bessa-Luís

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