– É baratinho, cliente, é só quinze (e)oiros a dúzia, é pagar ou largar …

Oh minha senhora, não diga que quer que o seu marido ande meio nu lá pelo meio da casa! Olhe só para estas ceroilas em algodão-virge que fazem até aquecer os mortos… – Trovejava, em altos berros, o patriarca-cigano que nem precisava de microfone, enquanto a matriarca ria de soslaio e acudia mais de meia dúzia de outros clientes, ao mesmo tempo, e que disputavam os kits em celofane, do último grito em camisas, “de caxemira” e, muito provavelmente, embaladas e Made in China.

Uma barafunda aquela! Então, no mês de Agosto, de tão apertada a “auto-estrada” para chegar às louças e plantas, do lado oposto, os filhos, em gritaria, quase que rogavam aos pais pela urgência do “INEM”, com pisadelas à direita e à esquerda, enquanto o progenitor tentava abrir caminho, cada vez com dificuldade acrescida, não havendo sinaleiro capaz de por ordem em tamanha confusão.

Finalmente, chegaram.

De volta a casa.

– Oh pai, não se comprou a minha bola para a praia…nem os meus calções!… Choramingou o Zezito, nos seus oito anitos.

– Mãe, não vou mais à feira, prometeste-me umas “jardineiras” para os anos e ainda estou à espera delas…-  protestou a adolescente Florbela, fazendo beiça, meia afogueada ainda do crosse forçado e com alguns estigmas de arranhadelas num dos braços.

Oh estupores, calaide-vos. Já estou farta das vossas rezas. Para a próxima prefiro ir à Charles que fico logo servida, do que fazer este calvário …

Alex recuou aos seus tempos de meninice e relembrou a mágica do momento, na então vila de Esposende.

Era às Segundas-Feiras, de quinze em quinze dias e sempre abrilhantada com música, todo o dia, pela casa Soucasoux, de Barcelos, que logo de manhãzinha instalava a sua cabine sonora na casa da Tininha Lucas.

Ainda o galo esfregava os olhos, lá pelas cinco e meia da matina, e já um troar de varas e de ferros era despejado para a valeta, de encosto às casitas da Ribeira, a troco de algum aluguer baratucho deste e daquele feirante, enquanto a maioria arribava à vila, em caravanas provindas mais do interior, de Barcelos, Braga, Viana, Póvoa, Prado e até dos lados do Porto.

Como actores de circo, a montagem como que obedecia a um ritual, sempre repetido mas com atenção redobrada ao lugar próprio de cada vara e ferro que suportavam a tenda com esticadores de corda presos em estacas de ferro estrategicamente colocados.

Nessa manhã, com a barafunda instalada, Alex parava de sonhar mais cedo e era acordado de supetão. O matraquear das macetas no chão parecia antecipar um qualquer terramoto que estivesse dormente por aqueles sítios. Logo mais, as tendas instaladas eram velas de navios que baloiçavam à nortada mas que abrigavam do sol e da chuva, conforme o tempo.

Um burburinho matinal apoderava-se da sua rua com mistura de dialectos ininteligíveis e berros dos feirantes entrados em disputas, por via do açambarcamento de meio metro roubado à tenda, pelo vizinho e que, por sua vez, tinha sido espoliado, pelo mesmo motivo, pelo feirante da tenda do lado. Pronta a legalidade, era hora do preparo ao ataque aos clientes, muitos deles madrugadores, para aproveitarem as pechinchas da ocasião.

Ali, para os lados do torreão do farolim onde a canalha se empoleirava todo o dia e que suportava ainda nos seus ferros mais de uma dúzia de outros esticadores de várias outras tendas, estava instalada a “catedral do fala-barato”. Em cima da carrinha, o nosso actor era um autêntico “doctor honoris causa” na sua especialidade, tentando vender o produto mais IN da ocasião, um remédio instantâneo de matar pulgas e percevejos, feito de um pozinho tão amarelo que só o seu polvilhar nos lençóis os hipnotizaria, ali e na hora:

– Olá, estimados ouvintes, caríssimo e adorado público. Eu não estou aqui para enganar ninguém. Reparem  nesta embalagem de remédio para a tosse que não é vendido em qualquer farmácia pois é um produto natural da nossa natureza. Pois ainda anteontem a minha mulher estava com uma rouquidão do caraças e tossia-me para todo o lado que até estava a ver que se me ia mais cedo, desta para melhor, para o “Paraíso das Delícias”. Pois sabem o que aconteceu? Dei-lhe a tomar uma xícara de chã com uma colherzinha deste produto e ficou-me como nova!… Nem sabem a “noite de núpcias” que tivemos!…

Risada geral.

Puxando agora por uma meia dúzia de colchas do tipo espanhol, enquanto afastava os remédios milagreiros.

– Pois estes brindes serão seus – continuava – inteiramente grátis! Não pagam nem mais um tostão. Apreciem-me agora estas riquíssimas colchas em estampado da Líbia com desenho marroquino, nunca visto em Portugal! Quanto vai pagar por cada uma? Pois não paga cem, nem noventa e cinco, nem oitenta, nem cinquenta. Vinte? Não, meu querido freguês, esta colcha fica-lhe também inteiramente grátis na compra deste cobertor de pele de ovelha da serra da Estrela – surgido como por mão milagreira logo ali à mão – e apenas pela módica quantia de cento e cinquenta mil réis!…

Aplausos da assistência e quase que de imediato uma corrida aos cobertores.

– Ora é um para aquela senhora, mais dois para este senhor, mais uma para aquela menina …e mais estes brindes e estas colchas para ali …eh gente, venham ao barateiro. Ah! Ah! Ali para aqueles “pombinhos”, mais um destes magníficos cobertores, e levam de brinde especial ainda mais este lenço de pura seda indiana (…)

Naquelas manhãs, mais para o interior da Ribeira, a feira do gado trazia um odor abostado que rivalizaria aos tempos da Idade Média. Era ali que os lavrantes de chapéu preto e aba larga, à pastor, apreciavam e discutiam, ao pormenor, as pás e as dentaduras das rezes e os chifres dos machos pois destes e outros pormenores dependiam uma boa cobridura das fêmeas e como tal o investimento tinha que ser muito bem calculado. No ar, uma sinfonia de “méééés” e “ôôôhh’s” rivalizava com a gritaria do Zé Povo numa amálgama de vozeirão que só terminava lá para a hora do almoço, quando a fome começava a dar sinais de si.

Ao lado e como cosido ao paredão do rio, uma procissão interminável de móveis, cadeiras, sofás, bancos, arcas, peneiras de farinha, cestas de vime ainda a serem acabadas por ciganos de ocasião, à mistura com mais cómodas e guarda-vestidos, camas de todo o feitio, pipas e tonéis, chancas pretas de tachas de latão e mais outras de cor-de-boi, socos e polainas, misturados com quadros da Sagrada Família, Sra.s das Neves e mais cântaros, alguidares avermelhados, cantarinhas das castanhas, púcaros e vasos de barro e ainda outras pechinchas de ocasião e só mesmo encontradas ali.

No Rodrigues Sampaio, entre o farolim e a casa do Adelino Torres, rivalizava o megafone do propagandista africano. Do alto de uma caixa de carga de uma carrinha, com chapéu à explorador, safari e microfone preso em armação metálica e enrolado num trapo e colado à boca:

– Vossa Excelência está a ver este frasco? Vossa Excelência está a ver o que tem dentro? Não está a ver, pois não? Não sabe o que é!? Nunca viu disto! Parece uma fita, parece uma tripa, mas não é. Esta coisa amarela, fininha e toda às pintinhas é uma …cobra! Uma autêntica cobra manhosa, não com cinco metros, não com dez metros, mas sim com quinze metros e setenta e três centímetros, medidos da cabeça à ponta do rabo!!! E donde vem ela? Donde veio? Da barriga de uma senhora de quarenta e três anos que vive em Ermesinde. Era este animal que tanto atormentava a mulher!

Espanto da assistência.

– Pois, Vossas Excelências – prosseguia o nosso homem – sabiam que esta mulher correu médicos, cirurgiões e até foi à bruxa de Alfena e a cobra sempre lá? Rabeava-lhe na pança, dia e noite, que a desgraçada nem dormia co’ as voltas c’o bicho dava encostando-lhe os rins ao fígado! Até que tomou a santa pomada BEM SAÚDE .

Ah !!! E então? – Questionou-se em pensamento a assistência.

– E então? Pois ao fim de três dias de toma, de manhã e à noite, a cobra sentiu-se toda estremecer, rabeou de morte e não teve outro remédio que não fosse largar o corpo da pobre coitada e afundar-se no penico!…

Palmas do público.

– É assim a santa pomada BEM SAÚDE!… E agora – Prosseguiu o propagandista – vou abrir esta mala. Mas cuidado, que estará lá dentro? Querem ver? Mas cuidado …vai sair …vai sair… (?) É ela…- mostrando o ofídeo gigante – a famosa … a grandiosa …a maravilhosa cobra que dá a santa pomada BEM SAÚDE! Anda cá animal. Sobre pr’áqui pró meu pescoço. Ah grande bicho!

Temerosos, alguns dos assistentes deram dois passos atrás.

– Não tenha medo, freguês – sossegava o nosso homem – não fuja a sete pés, esta é uma cobra santa, caçada nas florestas da Amazónia, um bicharoco que Deus colocou na terra para trazer a felicidade ao mundo. Por que é dela, é dela, estimado freguês, que se retira a santa pomada BEM SAÚDE!…

De imediato, foi o ataque da pequena multidão ao remédio milagreiro.

Passados uns minutos e tomando o pulso acelerado ao negócio e que ia de vento em popa:

– Mas Vossa Excelência dói-lhe um dente? – Continuava o charlatão, aparando o suor com a manga da camisa, que já gotejava – Dente não dói! Dente é osso. O que dói é a terminação nervosa que leva o dente ao cérebro. O dente começa a doer e Vossa Excelência põe um bocadinho desta santa pomada BEM SAÚDE na ponta do dedo e esfrega na cara, assim…assim…assim…Mas continua a doer? Continua a esfregar…assim…assim…assim…Até que a dor do dente lhe passa e Vossa Excelência está pronta para comer um valente bife da rabada de boi mais velho que o falecido avô de Vossa Excelência!

Gargalhadas e palmas da assistência que já vinha engrossando.

– Ah! Mas há mais! – Rematava o nosso propagandista – Vossa Excelência via-se a pentear e repara que o cabelo lhe está a cair. Continua a pentear – faz o gesto com um pente prateado na farta cabeleira – continua a cair. Continua a pentear … continua a cair, até que Vossa Excelência diz prá mulher: – Gertrudes, ‘tá-me a cair o meu rico cabelo!? Ao que a esposa de Vossa Excelência lhe responde: – Hóme, ‘tás na idade em que tudo te cai!…

Risota do público.

– Então Vossa Excelência coloca nas pontas dos dedos a santa e milagrosa pomada BEM SAÚDE e esfrega o coiro cabeludo assim …assim…assim… Continua a esfregar, continua a cair! Continua a esfregar assim…assim…assim…Continua a cair até que repara, e veja o milagre, que o seu estimado cabelo está agora mais forte que a juba de um leão!!!

Perante uma corrida frenética ao produto milagreiro do BEM SAÚDE.

– É freguês, chega p’ra todos. É uma embalagem para estes senhores… são três ali para aquele jovem …mais duas para aquele quarentão … e duas para aquela estimada cliente que por certo quer ver o seu marido com a sua nova juba de leão. (…)

Lá pela tardinha, a feira como que ia adormecendo e então tudo ainda era mais barato. Chapelinhos de palha com tapa-sol de plástico de todas as cores, cuecas e combinações, meias de algodão, flanelas, tecidos de calça de fiôco, lenços da mão, samarras de pelo, camisolas da Póvoa, gabardinas do último grito. Até o tecido, ao metro, ficava muito mais em conta.

A feira era o dia da nossa meninice, pela correria, por tanto salto, tanta gritaria, ao pilha, às escondidas e outras brincadeiras de criança, até ao recolher do toque das Trindades. Era o Natal antecipado, com o apanhar das caixas de papelão dos sapatos, dos pauzinhos-suportes das fazendas, dos celofanes das caixas de sapatos e chinelos – muito utilizados para fazerem cigarros de barba de milho – à mistura com os cordéis que eram a matéria-prima para as nossas joeiras que voariam bem mais alto que o torreão e alcançariam até o céu do nosso imaginário.

– Oh Tóino, onde te meteste, meu marotão ? – entoou voz sopranina de uma mãe preocupada.

Nada de resposta. O nosso tenor andaria a cantá-las por outros lados. Mas aonde?

– Nosso menino, num biste o meu Tóino – perguntou ao “Gatinho”, que por ali ia a esgueirar-se, lá pró Sul.

– Tia Micas, ele há-de estar pr’á Ribeira, pr’apanhar os paus … ou prós irões, nas escadinhas !?

Que estupor aquele, o pai dá-lhe o raio de uma coça que é mortes …Ai meu Sãojoanzinho me dê pacienç’a …que até me passo umas coisas negras pela cabeça qu’inda morro…

Dirigindo-se mais para o pé da Alfândega e aproveitando a boleia da nortada, voltou a chinfrinar, agora numa oitava acima:

– Oh Tóóóóóóói ……no, meu safadão, anda pr’a casa, se não o teu pai “bai- te” buscar …

Talvez que assustados por aquele tsunami de voz tão aguda, um bando de charréus, lavandiscas e andorinhas arrepiou caminho e arribou de imediato para Sul pois o Norte já não inspiraria grande confiança.

Finalmente e após mais alguns “Encores” de insistência, qual deles o mais assustador, o nosso Pavarotezinho deu sinal de vida e quando pressentiu o SOS da progenitora, lá respondeu:

– Já vooooooooooou, mãe – gritou, lá dos lados do Salva-Vidas. E numa de estafeta de cem metros-barreiras, descalço, esvoaçou até casa, desviando-se, mesmo a tempo, da primeira investida da mãe que quase lhe acertou com os socos dos pés que foram parar bem longe, tanta a zanga pela desespera. Enfiou-se, sorrateiramente, pela porta dentro e aguardou o ajuste de contas do pai que ainda estaria para vir, antes mesmo de abocanhar o presigo quase frio.

Naquele dia, os Tóinos, os Manéis, as Lurdinhas e toda aquela criançada da Ribeira provariam uma ceia mais melhorada.

 

MAX/Lamela

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